Resenha - Meu quintal é maior do que o mundo

sexta-feira, junho 14, 2019


Manoel de Barros afirma ter escrito 14 livros e, consequentemente, morrido 14 vezes. Meu quintal é maior do que o mundo é uma antologia de vários poemas do autor ao longo de sua carreira de 70 anos. Os neologismos, a natureza, a criança, os pássaros, o rio, os andarilhos e as descobertas são apenas alguns dos elementos que aparecem e constituem esses versos inigualáveis.


Título: Meu quinta é maior do que o mundo
Autor: Manoel de Barros
Nº de páginas: 168
Ano de publicação: 2015
Editora: Alfaguara
Avaliação: ★★★★★
Sinopse: Antologia dos poemas mais emblemáticos do poeta Manoel de Barros publicados ao longo de setenta anos.
Manoel de Barros é um dos poetas mais originais de nosso tempo. Sua obra inaugura um estilo único, que transforma a natureza, os objetos e a própria condição humana em expressões poéticas carregadas de significado e emoção. Esta antologia inédita reúne poemas de todas as fases do escritor, oferecendo um panorama abrangente de sua produção literária. Em mais de setenta anos de ofício, Manoel redesenhou os limites da linguagem e seus sentidos.
Meu quintal é maior do que o mundo recolhe poemas publicados por Manoel de Barros ao longo de mais de setenta anos. Recortar a obra desse poeta não é tarefa fácil, já que ela assume muitas formas, e se move como as águas do Pantanal. O problema desta e de qualquer seleção ou recorte da obra de Manoel de Barros, é, então, este: não se pode cercar a água. Nem com arame farpado
Embora fosse um erudito, Manoel de Barros preferia ocultar-se atrás de diversas máscaras, inclusive a da ignorãça, como ele grafava, à antiga. Numa de suas entrevistas, ele assim se define: “O poeta não é obrigatoriamente um intelectual; mas é necessariamente um sensual.” É esse sensualismo poético que lhe dá a feição genuína, e lhe permite, como ele ainda define, “encostar o Verbo na natureza”. Talvez nenhum outro poeta tenha tido uma relação tão intensa com ela. Por isso mesmo, a obra de Manoel de Barros foi escrita para o futuro. Meu quintal é maior do que o mundo revela a força, a vitalidade e o alcance universal da obra deste poeta inimitável.

Em Meu Quintal é Maior do Que o Mundo, Manoel de Barros traz poemas sobre crianças, passarinhos e andarilhos. Essa foi a primeira obra do autor que eu li, e achei incrível! Os poemas são riquíssimos em metáforas e em lirismo. Na verdade, alguns apresentam até um tom narrativo. 

"Três personagens ajudaram a compor estas memórias. Quero dar ciência delas. Uma, a criança; dois, os passarinhos; três, os andarilhos. A criança me deu a semente da palavra. Os passarinhos me deram desprendimento das coisas da terra. E os andarilhos, a paciência da natureza de Deus".

Os poemas sobre crianças resgatam a infantilidade e as histórias de infância do eu-lírico. Eu, como uma jovem adulta de vinte e um anos que sente muita falta da infância, indentifiquei-me em vários momentos. Nesses poemas, e até em outros, a escrita tem um tom infantil, evidenciando o estilo inigualável de Manoel de Barros, que conseguiu carregar tal perspectiva para dentro dos seus versos.

Retrato do artista quando coisa

A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.

Os poemas sobre os passarinhos falam de liberdade, misturam as cores e os sons. No geral, a maioria dos poemas da obra trazem a sinestesia e a metáfora, fanzendo o leitor degustar cores, enxergar cheiros e ouvir gostos.

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

Por fim, os poemas sobre os andarilhos, que são os seres sem compromisso com nada. Não vivem em um lugar fixo, podem conhecer vários lugares e não tem nem para aonde ir, nem para aonde voltar.

Auto-Retrato Falado

Venho de um Cuiabá de garimpos e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá entre bichos do chão,
aves, pessoas humildes, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar
entre pedras e lagartos.
Já publiquei 10 livros de poesia: ao publicá-los me sinto
meio desonrado e fujo para o Pantanal onde sou
abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo que fui salvo.
Não estou na sarjeta porque herdei uma fazenda de gado.
Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral porque só faço
coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.

Agora que terminei o livro, creio que uma segunda leitura será necessária, pois o livro pode ser lido tranquilamente em um dia e sinto que passou rápido demais (haha). Enfim, fica aí a recomendação dessa obra maravilhosa!

Os deslimites da palavra

Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu
destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.

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2 comentários

  1. Amei encontrar esse espaço muito produtivo. Muito obrigada.

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  2. Legal encontrar a resenha de Manoel de Barros - meu quintal é maior do que o mundo. Agradeço!

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